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6 de jun. de 2014

Do outro lado da linha

Por entre ruas que cortam avenidas, carros se proliferam aos montes. As bicicletas vão perdendo espaço para as motos no imaginário das crianças que, aliás, crescem rápido e logo se tornam pais. Os campos de futebol sem grama, apelidados por minha geração de rapadões, viraram casas que depois foram demolidas para dar à luz aos grandes prédios comerciais. As árvores foram sendo substituídas por outras de menor porte, mas ainda é possível se refrescar à sombra de algumas poucas sibipirunas que restam e resistem fortes abraçadas aos fios de alta tensão. As escolas continuam as mesmas, porém agora com outros professores, que continuam educando e transmitindo valores as crianças do bairro. A brincadeira na rua ficou mais perigosa devido ao trânsito, mas as pipas não deixaram de enfeitar o céu azul do mês de agosto. Os doces do carrinho do Vô, que ficava em frente ao Antônio Sebastião da Silva, foram substituídos pelos do 1,99, assim como a casquinha que era vendida ali na esquina e os gelinhos de groselha azul da Dona Regina, mas ainda assim continuam com o mesmo sabor de infância bem vivida.

O que antes era o fim do município agora é o centro de outra cidade. Novos bairros adjacentes foram sendo criados e outras pessoas de outros locais foram chegando. A mistura de raças, crenças e ambições foi tornando o Cervezão um lugar diferenciado, porém semelhante às grandes periferias de todo o Brasil com inúmeras possibilidades e enormes contradições. Aos poucos, o bairro – que chegou a ser bastante discriminado, mas que vem paulatinamente adquirindo outro status devido ao seu emergente poder político e econômico – se integra ao resto da cidade, pois passou a gerar a sua própria economia e também a ter um peso significativo nas eleições municipais. Aos poucos, a linha de trem, que era um divisor real e palpável e que separava o Grande Cervezão do resto da cidade, vai se tornando invisível quase que se apagando por completo do imaginário dos que aqui nasceram, moram ou foram criados.

O pontilhão, a Lagoa Seca, as quadras do Boa Esperança, a Avenida M-23, a Avenida M-25, a Rua M-8, a Rua M-12, a Estrada de Brotas, a erosão, a feira de domingo, os bares, as igrejas são patrimônio desse universo paralelo que se tornou o Cervezão. Ainda que muitos passos dados nessas “longas ruas distantes de subúrbio, velhas e compridas ruas não violadas pelos prefeitos”, tenham ficado para trás é certo que outros passos serão dados no intuito de seguir construindo a história desse bairro querido e odiado, que desde sempre gerou e vai continuar gerando uma mescla de sentimentos absortos. Para quem nasceu aqui e assistiu a tudo ser construído e modificado – como, por exemplo, o corte dos últimos eucaliptos, as ruas serem asfaltadas e se tornarem de mão única, a urbanização, a chegada do Trólebus, a expansão do comércio, a partida do Trólebus, a proliferação dos semáforos, a chegada das agências bancárias, da internet e das tevês a cabo – só existe uma palavra para exprimir o sentimento por esse local: contentamento.

Tudo no Cervezão é diferente. Sua origem ainda é meio confusa e controversa, mas o que se sabe é que o loteamento teve início nos anos 1970. Várias histórias são contadas a esse respeito e dois a cada dois moradores tradicionais dizem ter sido os primeiros a chegar e que “ali, logo ali”, apontando com o indicador, “era só pasto e eucalipto”, mas isso não importa, pois o que importa mesmo é que a história segue seu curso e de certa forma todos são autores dessa biografia. Quem chegou primeiro ou quem deu início a isso ou aquilo não conta, pois o que conta é o anseio desse povo que, no intuito de construir um lar, acabou edificando o bairro (perdoe a minha parcialidade) mais importante da cidade. Um bairro que estará sempre nos corações e mentes de cada um dos que passaram por aqui e tiveram sua história pessoal relacionada com a desse gigante de Rio Claro. A pessoa pode, por uma infinidade de motivos, sair do Cervezão, mas uma coisa é certa: o Cervezão nunca sai de dentro da pessoa.

Artigo publicado na sexta-feira (06) no caderno 'Especial Cervezão' da edição impressa do Jornal Regional.


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