Por entre ruas que cortam avenidas, carros se proliferam aos montes. As bicicletas vão perdendo espaço para as motos no imaginário das crianças que, aliás, crescem rápido e logo se tornam pais. Os campos de futebol sem grama, apelidados por minha geração de rapadões, viraram casas que depois foram demolidas para dar à luz aos grandes prédios comerciais. As árvores foram sendo substituídas por outras de menor porte, mas ainda é possível se refrescar à sombra de algumas poucas sibipirunas que restam e resistem fortes abraçadas aos fios de alta tensão. As escolas continuam as mesmas, porém agora com outros professores, que continuam educando e transmitindo valores as crianças do bairro. A brincadeira na rua ficou mais perigosa devido ao trânsito, mas as pipas não deixaram de enfeitar o céu azul do mês de agosto. Os doces do carrinho do Vô, que ficava em frente ao Antônio Sebastião da Silva, foram substituídos pelos do 1,99, assim como a casquinha que era vendida ali na esquina e os gelinhos de groselha azul da Dona Regina, mas ainda assim continuam com o mesmo sabor de infância bem vivida.
O que antes era o fim do município agora é o centro de outra cidade. Novos bairros adjacentes foram sendo criados e outras pessoas de outros locais foram chegando. A mistura de raças, crenças e ambições foi tornando o Cervezão um lugar diferenciado, porém semelhante às grandes periferias de todo o Brasil com inúmeras possibilidades e enormes contradições. Aos poucos, o bairro – que chegou a ser bastante discriminado, mas que vem paulatinamente adquirindo outro status devido ao seu emergente poder político e econômico – se integra ao resto da cidade, pois passou a gerar a sua própria economia e também a ter um peso significativo nas eleições municipais. Aos poucos, a linha de trem, que era um divisor real e palpável e que separava o Grande Cervezão do resto da cidade, vai se tornando invisível quase que se apagando por completo do imaginário dos que aqui nasceram, moram ou foram criados.
O pontilhão, a Lagoa Seca, as quadras do Boa Esperança, a Avenida M-23, a Avenida M-25, a Rua M-8, a Rua M-12, a Estrada de Brotas, a erosão, a feira de domingo, os bares, as igrejas são patrimônio desse universo paralelo que se tornou o Cervezão. Ainda que muitos passos dados nessas “longas ruas distantes de subúrbio, velhas e compridas ruas não violadas pelos prefeitos”, tenham ficado para trás é certo que outros passos serão dados no intuito de seguir construindo a história desse bairro querido e odiado, que desde sempre gerou e vai continuar gerando uma mescla de sentimentos absortos. Para quem nasceu aqui e assistiu a tudo ser construído e modificado – como, por exemplo, o corte dos últimos eucaliptos, as ruas serem asfaltadas e se tornarem de mão única, a urbanização, a chegada do Trólebus, a expansão do comércio, a partida do Trólebus, a proliferação dos semáforos, a chegada das agências bancárias, da internet e das tevês a cabo – só existe uma palavra para exprimir o sentimento por esse local: contentamento.
Tudo no Cervezão é diferente. Sua origem ainda é meio confusa e controversa, mas o que se sabe é que o loteamento teve início nos anos 1970. Várias histórias são contadas a esse respeito e dois a cada dois moradores tradicionais dizem ter sido os primeiros a chegar e que “ali, logo ali”, apontando com o indicador, “era só pasto e eucalipto”, mas isso não importa, pois o que importa mesmo é que a história segue seu curso e de certa forma todos são autores dessa biografia. Quem chegou primeiro ou quem deu início a isso ou aquilo não conta, pois o que conta é o anseio desse povo que, no intuito de construir um lar, acabou edificando o bairro (perdoe a minha parcialidade) mais importante da cidade. Um bairro que estará sempre nos corações e mentes de cada um dos que passaram por aqui e tiveram sua história pessoal relacionada com a desse gigante de Rio Claro. A pessoa pode, por uma infinidade de motivos, sair do Cervezão, mas uma coisa é certa: o Cervezão nunca sai de dentro da pessoa.
Artigo publicado na sexta-feira (06) no caderno 'Especial Cervezão' da edição impressa do Jornal Regional.
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Eu quero que as ideias voltem a ser perigosas.
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